domingo, 28 de fevereiro de 2010
Memórias da tropa (29): o atropelamento...
Último fim-de-semana de Fevereiro. O Alferes tinha acabado de chegar da «metrópole», após um período de 35 dias de férias. Como tinha sido o único a gozar dois períodos de férias em Portugal, os restantes oficiais «elegeram-no» oficial-de-dia durante todos os sábados e domingos que restavam até ao regresso. Nada fazia prever que a noite de sábado fugisse da rotina. O habitual baile na «sociedade» ao lado da messe estava ao rubro. Grande parte do pessoal militar tinha ido ao cinema nas Mabubas. O Alferes aproveitou para escrever à família. Pouco passava da meia-noite, quando ouviu chegar os camiões Berliet que traziam o pessoal. Subitamente, o furriel mecânico, muito ofegante, entrou no seu quarto: «Alferes, temos um problema grave. Uma das Berliet atropelou um indivíduo na recta junto às sanzalas. Ele estava agachado de costas junto à berma da estrada com uma garrafa de cerveja na mão. Assustou-se com o barulho do motor e caiu para trás. Ainda parámos, mas as pessoas viraram-se contra nós. Tivemos de fugir…». Pergunta o Alferes: «Morreu?». Diz o outro: «Acho que sim. Já avisei a OPVCA para lá ir com a ambulância…». O Alferes pensou um minuto e disse: «Bom. Temos de lá ir também. Prepara duas Berliet com pessoal não envolvido no acidente. Avisa o comando do batalhão e chama o pessoal do MPLA e da FNLA para irem connosco ao local!». Com dois camiões cheios de tropa e de guerrilheiros do MPLA e do FNLA, o Alferes seguiu para a recta das sanzalas a poucos quilómetros da Vila. Na cabina do camião da frente, além do condutor, seguiam o Alferes e dois guerrilheiros chefes dos grupos. Já próximo das sanzalas, as Berliet reduziram a velocidade e com as luzes no máximo foi possível ver um cenário assustador. Alguns populares procuravam colocar o corpo na ambulância (uma Renault 4L…), outros não deixavam e na contenda, o morto caia para o chão. Ao verem os camiões, a população invadiu a estrada com ar ameaçador. A tropa e os guerrilheiros apontaram as armas aos populares. Ao mesmo tempo, os do MPLA e da FNLA gritavam com as pessoas no dialecto tradicional. O Alferes e os dois chefes da guerrilha saíram da cabina do camião para tentar chegar junto do corpo e da ambulância. Imediatamente, um popular já de idade foi direito ao Alferes e empurrou-o com toda a força, fazendo com que batesse com a cabeça no camião. De repente, ouviu-se uma sirene. Atrás dos dois camiões surge um automóvel Volkswagen que transportava o tenente-coronel comandante do batalhão e mais seis camiões Impala carregados de tropa. A multidão recuou. Foi possível, então, falar com os representantes da população, já mais calma, e proceder ao transporte do morto, que era professor na escola primária. Consequência: além do susto o Alferes teve de ouvir um raspanete do comandante do batalhão por ter avançado para o local sem esperar pelos reforços...
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