domingo, 27 de dezembro de 2009

Memórias da tropa (22): o prisioneiro «João»...

O «João» tinha sido aprisionado já há alguns meses. Guerrilheiro de Holden Roberto (FNLA), ainda criança tinha fugido com a família para o Zaire no início da guerra. Donde, falava o português com dificuldade, mas exprimia-se razoavelmente bem em francês.Toda a sua vida tinha sido dedicada à luta anti-colonial. Naquele mês, a operação de «intervenção» cabia aos 1.º e 4.º pelotões. Naturalmente, a operação deveria ser comandada directamente pelo comandante da Companhia. Mas, o capitão, mais uma vez, arranjou uma desculpa para não sair e coube, assim, ao alferes mais velho o comando da operação. No dia anterior, o Alferes e o colega foram informados de que se fariam acompanhar por um «terrorista já recuperado», que os iria guiar até aos locais onde, alegadamente se encondiam os guerrilheiros. Mais do que o confronto directo, a operação visava a distribuição de propaganda que «convidava» as populações encondidas na mata a entregarem-se à tropa, onde «seriam muito bem recebidas». Um pouco surpreendidos, os dois oficiais lá foram preparar os seus grupos de combate, tendo recebido um grande pacote de panfletos, nos quais, de um dos lados, tinha desenhados uns africanos bem vestidos, a trabalhar e sorridentes, ao lado da Bandeira Nacional. Do outro, uns maltrapilhos, de olhos esbugalhados pela fome, que «representavam» as populações controladas pela guerrilha. Após várias horas de caminho feito em Berliets, os dois grupos de combate foram deixados no local previsto para iniciarem a operação a pé. Antes de começar a jornada «pedestre», os dois alferes chamaram o «João» à parte. Diz o alferes no comando: «Olha, vamos combinar uma coisa. Não penses em fugir, pois se tal acontecer os 'entalados' somos nós!». Acrescenta o Alferes: «E quanto a conduzir-nos onde te disseram para nos conduzires, ficas a saber que não estamos interessados em cair na 'boca-do-lobo'!» O «João» sorriu e respondeu no «seu» português: «Fiquem descansados, pois não estava a pensar em fazer nenhuma das duas coisas.». Entendidas as «regras do jogo», a operação decorreu com normalidade, sempre sobrevoada por uma aeronave Dornier da FAP, que pretendia monitorizar a localização da tropa. O pacote da propaganda ficou numa vala e o patrulhamento foi feito até onde havia segurança. Durante os dois meses seguintes, sempre que o pessoal do Batalhão vinha ao Colonato jogar à bola com o pessoal da Companhia, lá estava o «João» entre os «adeptos» que acompanhavam a equipa visitante. Um dia, o «João» deixou de vir apoiar a equipa. «Que é feito do 'João'?», perguntou o Alferes a um colega do Batalhão. «Olha, desapareceu de repente. Fugiu!». «Ai sim?», disse curioso o Alferes. Acrescenta o outro: «E o pior, é que levou três soldados angolanos que desertaram com ele.»... Nunca mais se ouviu falar, nem do «João», nem dos outros três...

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